quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ninguém dorme


Ninguém dorme, ainda que pense precisamente o contrário. A vagarosa obscenidade da morte, quando cruza a fronteira inevitável do inevitável, fá-lo pelo ar. A luz é a imagética do ar, o inconfundível sonho condicionado do ar, um delírio electromagnético com aspirações cinematográficas excepcionais. Até os cegos vêem um sucedâneo da luz no especto multiforme da sua escuridão. Uma aparição de significados.
Ninguém dorme. O sono é uma crença cada vez mais disforme e menos global. Acredita-se tão-somente que se dorme. Os grandes ateístas do sono acrescentariam: acredita-se que se dorme com a mesma credulidade com que uma criança acredita no Pai Natal. O sono é uma invenção mítica que, com o tempo, entrou no sangue e na nossa composição. Um parasita anormalmente pacato e auspicioso, capaz da mais verosímil e desculpável das vaidades: suprimir frequentemente a vida, de forma a adjectivá-la ainda mais.   
Ninguém dorme. Estão todos a trabalhar duramente no seu projecto privado de eternidade. Estão todos a construir ou a destruir algo: o seu dia, a sua náusea, a sua arte. Estão todos a fingir uma vida calma, mais mineral; estão todos a ganhar calcário, diademas e chagas.

Ninguém dorme. Só dormem os fracos.

sábado, 15 de novembro de 2014

O reincidente

Tenho a sensação constante do equívoco, como o ladrar esquartejado de um cão sobre um fundo de lamentos. Assisto, impávido, ao suicídio sumário das horas que não me pertencem. Às vezes apetece-me encostar um fósforo aceso ao mundo, mas o mundo despreza esta e outras formas de eloquência. Acordo em completo desacordo com a minha condição. Acordo em consonância com a velocidade e a desfocagem, como se pertencesse à casta mais baixa de uma colónia de térmitas. Acordo completamente cego. Sem asas. Vitalmente imaturo. Predestinado para a concepção honrosa de túneis, apto para descobrir água e alimento, sempre com o cuidado de zelar pela alta eficácia do reino. Mas a verdade é que nunca desperto.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Perder Teorias

Tudo se perde e eu perdi a teoria. Foi assim, de um dia para o outro. Eu já não era um homem muito prático, mas tinha teorias sobre a funcionalidade do mundo que me mantinham à tona das manhãs. Tábuas de salvação. Eu era um empregado doméstico com livros importantes e ideias claras. Entretanto, fazia as lides da casa. Agora, sem livros, sou apenas um empregado doméstico e o trabalho e o pó vão-se acumulando. A casa tende a ficar inabitável. Vai chegar o dia em que serei despedido da minha própria casa. Nesse dia eu vou ser um brilhante desempregado doméstico. Um magnífico mendigo ontológico. Um afogado perpétuo com a memória atravessada de teorias e tábuas de salvação. Um dia o mundo também me vai apresentar a sua carta de demissão. Finalmente a minha verdadeira vocação será recompensada.