Ninguém dorme, ainda que pense precisamente o
contrário. A vagarosa obscenidade da morte, quando cruza a fronteira inevitável
do inevitável, fá-lo pelo ar. A luz é a imagética do ar, o inconfundível sonho
condicionado do ar, um delírio electromagnético com aspirações cinematográficas
excepcionais. Até os cegos vêem um sucedâneo da luz no especto multiforme da
sua escuridão. Uma aparição de significados.
Ninguém dorme. O sono é uma crença cada vez mais
disforme e menos global. Acredita-se tão-somente que se dorme. Os grandes
ateístas do sono acrescentariam: acredita-se que se dorme com a mesma credulidade com que uma criança acredita no Pai Natal. O sono é uma invenção mítica que, com o
tempo, entrou no sangue e na nossa composição. Um parasita anormalmente pacato e
auspicioso, capaz da mais verosímil e desculpável das vaidades: suprimir frequentemente
a vida, de forma a adjectivá-la ainda mais.
Ninguém dorme. Estão todos a trabalhar
duramente no seu projecto privado de eternidade. Estão todos a construir ou a
destruir algo: o seu dia, a sua náusea, a sua arte. Estão todos a fingir uma
vida calma, mais mineral; estão todos a ganhar calcário, diademas e chagas.
Ninguém dorme. Só dormem os fracos.
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